02 outubro 2025

Bailado Les Sylphides de Chopin


Les Sylphides, um bailado baseado em música de Frédéric Chopin (1810–1849), orquestrada por Alexander Glazunov (1865–1936), e com coreografia de Michel Fokine (1880–1942), interpretado pelas bailarinas americanas Marianna Tcherkassky, Cynthia Harvey e Cheryl Yeager, o bailarino Mikhail Baryshnikov (letão naturalizado americano), e o corpo de bailado do American Ballet Theater

O compositor polaco Frédéric Chopin nunca escreveu música para bailado, e menos ainda para um bailado chamdo Les Sylphides, mas a verdade é que existe um tal bailado, cuja música é corretamente atribuída a Frédéric Chopin.

Toda a música de Chopin foi escrita para piano, a solo ou acompanhado, e muita dela foi inspirada nas danças tradicionais do país natal do compositor, a Polónia. Um outro compositor, o russo Alexander Glazunov, decidiu pegar em algumas das peças musicais de Chopin, transcreveu-as para orquestra e fez delas um bailado, a que deu o nome de Les Sylphides. A coreografia do bailado ficou a cargo de Michel Fokine, também russo.

Ao contrário de muitos outros bailados, Les Sylphides não conta qualquer história. É um bailado sem enredo, que vale pela bela música de Chopin, pelos movimentos harmoniosos da coreografia de Fokine e pela graciosidade dos bailarinos. Les Sylphides é um dos exemplos mais perfeitos do chamado ballet clássico.

29 setembro 2025

Porque no mundo mengou a verdade

Porque no mundo mengou a verdade,
punhei um dia de a ir buscar,
e, u por ela fui [a] preguntar,
disserom todos: — Alhur la buscade,
ca de tal guisa se foi a perder
que nom podemos en novas haver,
nem já nom anda na irmaindade.

Nos moesteiros dos frades negrados
a demandei, e disserom-m'assi:
Nom busquedes vós a verdad'aqui,
ca muitos anos havemos passados
que nom morou nosco, per bõa fé,
[nem sabemos u ela agora x'é,]
e d'al havemos maiores coidados.

E em Cistel, u verdade soía
sempre morar, disserom-me que nom
morava i havia gram sazom,
nem frade d'i já a nom conhocia,
nem o abade outrossi, no estar,
sol nom queria que foss'i pousar,
e anda já fora d[a] abadia.

Em Santiago, seend'albergado
em mia pousada, chegarom romeus.
Preguntei-os e disserom: — Par Deus,
muito levade'lo caminh'errado!
Ca, se verdade quiserdes achar,
outro caminho convém a buscar,
ca nom sabem aqui dela mandado.

Airas Nunes, trovador galego do séc. XIII

NOTA
[nem sabemos u ela agora x'é,] — verso que falta nos manuscritos que chegaram até aos nossos dias, reconstituído pelo prof. Rodrigues Lapa


GLOSSÁRIO
mengou — minguou
punhei — esforcei-me
u — onde
alhur — alhures, noutro lugar
ca — pois
guisa — maneira
en novas — notícias sobre esse assunto
frades negrados — frades vestidos de negro, da ordem beneditina
nosco — connosco
al — outras coisas
Cistel — Cister (ordem religiosa)
soía — era frequente
i — aí
gram sazom — muito tempo
sol nom — nem mesmo
romeus — romeiros
ca nom sabem aqui dela mandado — porque aqui nada sabem dela



O mundo mengou a verdade, sirventês (género poético medieval) do trovador galego Airas Nunes (séc. XIII), musicado por Xosé Quintas-Canella e interpretado pelo agrupamento DOA, da Galiza

27 setembro 2025

Lino António


Peixeirinhas, 1938, óleo sobre tela de Lino António (1898-1974). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Sem título, 1923, óleo sobre tela de Lino António (1898-1974). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Vitrais de Lino António (1898-1974), evocativos da atividade económica ligada à vitivinicultura na Região Demarcada do Douro. Casa do Douro, Peso da Régua
(Clicar na imagem para ampliá-la)

O pintor leiriense Lino António da Conceição nasceu na cidade do Lis em 1898. Frequentou o Curso de Desenho Ornamental na Escola Industrial e Comercial de Leiria, que é a atual Escola Secundária Domingos Sequeira. Rumou a Lisboa, a fim de frequentar a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, mas por pouco tempo, porque logo de seguida se mudou para o Porto, onde foi aluno do pintor Marques de Oliveira, entre outros mestres, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto.

Além de uma intensa atividade no domínio da criação artística, Lino António dedicou-se ao ensino. Lecionou na Escola Industrial e Comercial da Marinha Grande, na Escola Industrial Machado de Castro, em Lisboa, e na Escola de Artes Decorativas António Arroio, também em Lisboa, da qual acabou por ser diretor. Como docente, Lino António mantinha uma relação aberta com os seus alunos, partilhando com eles, nas aulas, numerosos livros e revistas de sua propriedade pessoal.

Lino António prezava um estilo de vida requintado e distinto, mas não era somente com a venda dos seus quadros e com o seu salário de professor que conseguiria segui-lo. Para poder levar o estilo de vida que desejava, Lino António realizou vários trabalhos de grande envergadura para diversos organismos, que foram bem pagos. Assim, encontram-se espalhados por todo o país vitrais, tapeçarias, painéis cerâmicos, etc., que são da sua autoria.

Depois de se aposentar como professor, Lino António continuou a pintar quase até ao fim dos seus dias. Morreu em Carnaxide, Oeiras, em 1974.

24 setembro 2025

Colheres afro-portuguesas


Três colheres afro-portuguesas de marfim do séc. XVI, de autor anónimo e pertencentes à cultura Edo ou Owo, na atual Nigéria. Coleção dos Médicis, Museu de Antropologia e Etnologia de Florença, Florença, Itália (Foto: Saulo Bambi)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Em rigor, a chamada arte afro-portuguesa pouco ou nada tem de especificamente português. Esta arte é constituída por objetos produzidos por artistas africanos, com vista a satisfazer encomendas que mercadores portugueses lhes faziam. Quando, mais tarde, regressavam à Europa, os mercadores revendiam estes objetos a reis, príncipes e outros clientes europeus abastados, como sendo objetos de luxo e de prestígio, ou simplesmente como maravilhas vindas de paragens exóticas.

O que pode haver de português na chamada arte afro-portuguesa são os temas representados nos objetos ou o uso a que estes se destinavam. Um mercador português dirigia-se a um artista africano e pedia-lhe que fizesse um determinado objeto, como um saleiro ou um cálice, que fosse de marfim, de ouro, de ébano, de bronze ou de outro material, e que representasse um cavaleiro europeu, por exemplo, ou que incluísse o brazão de um dado conde ou duque, se este já tivesse reservado a encomenda. O artista africano satisfazia a encomenda de acordo com a sua própria cultura e com a visão que tinha dos europeus e do mundo. O resultado, que quase sempre é híbrido na forma ou na função, é 100 % africano na estética.

20 setembro 2025

O homem que busca estremecer


(Imagem de autor desconhecido)


Era um homem rico e tinha um filho que nunca estremeceu com nada. Dava-lhe o signo dele de ir passar muitas terras e não seria timorato, nunca teria medo a cousa nenhuma. Disse para o pai: «Meu pai dê-me o que me pertence, que eu cá vou viajar.» Deu-lhe moço e cavalo e dinheiro; chegou a uma terra; pediu se o acolhiam; disseram-lhe que não; que havia aí uma casa rica, mas que a família que não vivia lá; andava lá um diabo estoirando dentro das casas. Ele foi pedir à dona da casa se ela lá o deixava ficar; ela consentiu. Foi e tarde da noite ouviu dizer: «Eu caio.» Disse ele: «Cai para aí!» «Caio junto ou aos bocados?» «Cai aos bocados.» «Depois caiu uma perna; daí a bocado caiu outra e por fim caiu o resto. O rapaz disse: — «Da parte de Deus te requeiro que te ponhas a pé e digas o que queres.» Uniram-se as partes do corpo e ficou um homem que disse: «Eu sou o dono desta casa; possuía uma quinta alheia, que não me pertencia; se a minha mulher não a restituir, vou para o inferno e toda a minha família; se a restituir, vamos para o céu.» O rapaz disse-lhe: «Pois eu digo-lho e estou certo que ela a há de restituir.» — «Na adega está também um caneco cheio de dinheiro debaixo da cuba grande; vai buscar um ramo de oliveira para eu o ir lá pôr.» O rapaz foi buscar um ramo de oliveira e o medo foi o pôr na adega para se saber onde estava enterrado o dinheiro. Ao outro dia o rapaz foi ter com a viúva e disse-lhe todo o transe como se passara e que restituísse a quinta aos pobres a quem ela pertencia, senão vai o seu marido para o inferno e toda a sua família.» — «Pois, Senhor, fico-lhe muito obrigado.» Foram à adega e acharam no sítio onde estava o ramo de oliveira o dinheiro enterrado e nos sítios onde o tal sujeitinho tinha deixado as pegadas estava queimado no chão. A senhora disse‑lhe: «Há de demorar-se até fazermos entrega da quinta aos seus donos.» Depois que isso fizeram, disse a senhora ao rapaz: «Eu de mim não tenho que lhe dar, só se quer a minha filha.» Ele disse: O meu signo dá-me de andar ver muitas terras e eu quero ir solteiro para a minha terra. A filha disse: «Nós não temos nada que dar àquele senhor; demos-lhe um casal de pombas fechadas num gigo.» Ele levou o gigo e caminharam. Chegados a certo sítio disse o criado para o amo: «Ó meu amo! vamos a ver o que vai aqui; ele, o quer que é, bole.» O amo pegou no gigo, vai a desatá-lo e as pombas esvoaram-lhe por a cara e ele estremeceu; volta para casa agradecer à tal senhora o obséquio que lhe fez com o presente que lhe quebrou o fado e casou com a filha dela e depois voltou para a terra.



Conto popular recolhido em Ourilhe, Celorico de Basto, por Adolfo Coelho (1847–1919)

18 setembro 2025

O Magnum Mysterium


O Magnum Mysterium, do compositor português D. Pedro de Cristo (ca. 1550 – 1618), pelo Manuel Faria Ensemble dirigido por Paulo Bernardino

16 setembro 2025

Noções elementaríssimas da Transformada de Fourier e da sua importância prática


Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768—1830), matemático e físico francês (Gravura de Julien Léopold Boilly)

Todos nós vivemos envolvidos em ondas, umas mais simples e outras mais complexas. Qualquer que seja a forma com que elas se nos apresentam, nós não temos meio de lhes escapar: os sons entram nos nossos ouvidos sob a forma de ondas sonoras, a luz chega aos nossos olhos sob a forma de ondas eletromagnéticas, as ondas do mar que fazem balançar um barco ancorado num cais são ondas mecânicas, os sinais que os nossos cinco sentidos enviam para o cérebro são ondas de polarização e despolarização das células nervosas, etc.

A onda mais simples que existe é a chamada onda sinusoidal, de uma simples frequência. Esta onda corresponde às funções trigonométricas chamadas seno e cosseno, que são iguais entre si na forma e só diferem no ponto de partida em que começam a ser medidas. Na figura seguinte, está representado um seno, porque no seu ponto inicial a função tem o valor zero. Se a onda começasse no seu valor máximo, seria um cosseno. Na imagem, o n.º 1 é o valor de pico da amplitude da onda, o n.º 2 é o seu valor de pico a pico, o n.º 3 corresponde ao chamado valor eficaz (de fundamental importância em eletricidade), e o n.º 4 é o período da onda, que corresponde ao tempo que a onda demora a completar um ciclo e a regressar ao seu valor inicial. Se a onda demorar um segundo a completar um ciclo, então tem uma frequência de 1 Hertz (1 Hz) ou, como se dizia antigamente, 1 ciclo por segundo.



Cada cor do arco-íris corresponde a uma onda sinusoidal de frequência única. A cor amarela, por exemplo, tem uma frequência que pode variar entre 510 e 530 Terahertz (THz), ou seja, entre 510 e 530 biliões de Hertz, consoante for mais alaranjada ou mais esverdeada.



Um diapasão produz ondas sonoras que são sinusoides puríssimas, mas só as produz a partir do momento em que se dissipar o som transitório provocado pela pancada inicial.



O matemático e físico francês Joseph Fourier, que viveu no tempo da Revolução Francesa, foi duplamente revolucionário porque, além de ter sido um ativo apoiante da Revolução, também revolucionou a Ciência. Nas suas investigações científicas, Fourier procurou compreender de que forma se processava a propagação do calor. Foi ele, aliás, a primeira pessoa no mundo a sugerir a existência do chamado efeito de estufa na atmosfera terrestre.

Quando tentava deduzir um modelo matemático para a propagação do calor, Fourier descobriu que era possível decompor uma onda periódica regular, qualquer que fosse a sua forma, numa sobreposição de ondas sinusoidais individuais. O somatório de todas estas ondas, desde a que tem a frequência fundamental (geralmente a frequência mais baixa) até à que tem a frequência mais alta (teoricamente situada no infinito) chama-se Série de Fourier.

Cada uma das sinusoides que compõem um sinal periódico tem uma amplitude própria, que também pode ter o valor zero. Na figura seguinte podemos ver como uma onda quadrada é o resultado da soma de sinusoides com as frequências f, 3f, 5f, 7f, 9f, 11f, etc. Neste caso, para que a onda resultante da soma seja quadrada, as amplitudes das sinusoides ímpares vai diminuindo à medida que aumentam as suas frequências. As sinusoides com as frequências pares (2f, 4f, 6f, 8f e assim sucessivamente) não existem, isto é, têm amplitude zero. Uma onda quadrada só tem frequências harmónicas ímpares. Em contrapartida, uma onda triangular só tem harmónicas pares.


A fórmula genérica de uma Série de Fourier tem o seguinte aspeto (não é para assustar; é só para mostrar como é) e produz, como resultado, uma função matemática no domínio do tempo.


Após ter obtido a fórmula da Série que descreve os sinais periódicos, quaisquer que eles sejam, e que tomou o seu nome, Joseph Fourier pensou que também haveria de descobrir uma fórmula que descreva um qualquer sinal não periódico, de aspeto irregular, como é o caso de um sinal registado por um sismógrafo durante um tremor de terra, o ruído provocado pela água quando sai de uma torneira ou a cintilação da belíssima estrela Sírius numa noite sem nuvens.

Considerando que um qualquer sinal irregular poderia ser, no limite, um sinal regular de período infinito, Fourier substituiu o somatório da Série por um integral e, após mais umas manipulações, chegou à sua famosa fórmula da Transformada, que também passou a chamar‑se de Fourier.

Um leigo em Matemática poderá achar que a fórmula da Transformada de Fourier é uma coisa de meter medo. Verdadeiramente não é, mas é claro que é preciso saber o que significa cada um dos seus componentes e qual é o papel que desempenha. A fórmula da Transformada de Fourier é a seguinte.


Com a descoberta desta fórmula, Fourier subiu ao Olimpo da Matemática, tornando-se um dos seus maiores "deuses". Nunca é demais salientar a extraordinária importância que a Transformada de Fourier tem para a Ciência e para a Tecnologia. As suas aplicações são inúmeras e estão por todo o lado à nossa volta.

A Transformada de Fourier transforma uma função de onda que está no domínio do tempo ou do espaço, numa outra que lhe é equivalente, mas está no domínio das frequências. Por si só, a fórmula matemática da Transformada de Fourier não nos dá uma ideia clara de como isto se passa.

Costuma-se dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras, mas neste caso poderíamos dizer que uma imagem vale mais do que mil fórmulas matemáticas. Reparemos na imagem seguinte.


No centro desta imagem, vemos um sistema de três eixos coordenados perpendiculares entre si, x, y e z. Embora as legendas estejam em inglês, não é difícil verificar que o eixo dos xx, nos dá o tempo (neste caso), o eixo dos yy nos dá a frequência e o eixo dos zz nos dá a amplitude do sinal, que corresponde ao seu brilho, volume de som, enfim, à sua intensidade.

Colocando-nos à esquerda da imagem e olhando para a direita, vemos a evolução do sinal ao longo do tempo: o sinal original está a traço grosso; as sinusoides em que ele se decompõe estão a traço fino, aparecendo sobrepostas, independentemente da frequência que tiverem.

Cada uma das sinusoides tem uma frequência que lhe é própria. Vamos então colocá-las no eixo das frequências (eixo dos yy), cada uma delas na posição que corresponde à sua frequência, como se vê no centro da imagem.

Mudando de perspetiva, passemos para a direita da imagem e olhemos no sentido da esquerda. O que vemos são as frequências de cada uma das sinusoides, que nos aparecem sob a forma de impulsos, cuja altura indica a sua amplitude. Olhando da direita para esquerda, então, vemos o sinal no domínio das frequências. O sinal original é o mesmo; se mexermos nos impulsos, mexeremos na própria evolução do sinal no domínio do tempo.

As representações à esquerda e à direita da imagem são duas formas distintas de nos mostrar o mesmo sinal: à esquerda está a sua representação no domínio do tempo e à direita está a sua representação no domínio das frequências. O que a Transformada de Fourier faz, então, é passar um sinal que está no domínio do tempo (ou do espaço) para o domínio das frequências.

A vantagem que a Transformada de Fourier nos traz, é a de que é muito mais fácil processar um sinal no domínio das frequências do que no domínio do tempo ou do espaço. Assim, depois de termos manipulado um determinado sinal no domínio das frequências, podemos revertê-lo para o domínio do tempo ou do espaço, através da chamada Transformada Inversa de Fourier.

Só para dar uma ideia do seu aspeto, a seguir se mostra a fórmula genérica da Transformada Inversa de Fourier.

Uma Transformada de Fourier é uma função rigorosa, mas a sua aplicação na prática é problemática, para dizer o mínimo. A fim de se poder tirar partido da Transformada, é necessário proceder a simplificações e adaptações, que não prejudiquem seriamente o resultado final. Teoricamente, a Transformada de Fourier é uma função contínua, que nos dá um resultado em frequências que variam entre -∞ e +∞. Ora em todas, ou quase todas, as aplicações práticas não é necessária uma tão extensa gama de frequências. Só tem interesse uma faixa limitada delas.

Por exemplo, um aparelho de tomografia computorizada (TAC) utiliza feixes de raios X, com os quais vai fazendo um varrimento do organismo a observar, a fim de nos mostrar o seu interior "às fatias". Como os feixes são de raios X, só têm interesse as frequências que estão dentro da gama dos raios X e não quaisquer outras, como as frequências da luz visível, proveniente das lâmpadas que iluminam a sala. Sendo assim, na aquisição do sinal a processar eliminam-se todas as frequências que não sejam de raios X, sem que o resultado final seja seriamente prejudicado.


Vivemos num ambiente cada vez mais digitalizado. Embora existam exceções, a tecnologia digital tem quase sempre claras vantagens sobre o domínio analógico, que é o do mundo que nos rodeia. Não é por acaso que os computadores, telemóveis, televisores e muitos outros equipamentos que usamos diariamente são digitais, ainda que já tenham sido analógicos no passado. Sendo assim, só teremos vantagem em poder passar igualmente a Transformada de Fourier para o domínio digital, onde poderemos manipular os sinais de uma maneira mais prática e mais conveniente. A tarefa não é fácil e, em rigor, nem sequer existe uma "Transformada Digital de Fourier". O que existe, é a Transformada Discreta de Fourier, a qual poderá ser posteriormente trabalhada por processos digitais.

A Transformada de Fourier é uma função contínua no tempo ou no espaço. Ela poderá ter intermitências, mas estas já fazem parte do próprio sinal a processar e não resultam da Transformada em si. Por isso é que a Transformada de Fourier é por vezes chamada Transformada Contínua de Fourier. Ora acontece que um sinal que seja digital não é contínuo, pois resulta de sucessivas "fotografias instantâneas" feitas a um sinal analógico: à medida que o sinal analógico vai evoluindo no tempo ou no espaço, são tiradas "fotografias instantâneas" desse mesmo sinal a intervalos regulares, as quais são seguidamente digitalizadas. Este processo é chamado amostragem do sinal. O conjunto das amostragens feitas a um sinal contínuo resulta num sinal que é chamado discreto.

Na imagem seguinte vemos, em cima, um sinal que é contínuo e, em baixo, vemos os pontos do sinal em que é feita a sua amostragem. Neste caso concreto, são 8 os pontos da amostragem.

A Transformada Discreta de Fourier é a Transformada de Fourier aplicada a um sinal tornado discreto, com vista à digitalização do sinal. A Transformada Discreta de Fourier é representada pela seguinte fórmula matemática (apenas para mostrar como se parece).


Também existe uma Transformada Discreta Inversa de Fourier, que tem a fórmula matemática seguinte.


O meio de obter na prática uma Transformada Discreta de Fourier, dentro de um ambiente eletrónico digital, é chamado Fast Fourier Transform (em inglês), a que corresponde a sigla FFT. Em rigor, a FFT não é uma Transformada, apesar do nome, mas sim um algoritmo. É o algoritmo mais rápido e compacto que se conseguiu obter até agora para este fim e que, por isso, se chama Fast (rápido).

O sinal a ser processado, que é analógico, começa por ser filtrado por filtros analógicos, que limitam as suas frequências à banda de frequências que interessam, descartando as restantes. O sinal assim filtrado é seguidamente amostrado em intervalos de tempo iguais e os resultados da amostragem são guardados em circuitos chamados Sample and Hold, que também poderiam ser designados "memórias analógicas", que é o que eles são. Mostra-se a seguir um diagrama funcional de um circuito Sample and Hold.


Os valores recebidos e guardados em circuitos Sample and Hold passam à sua digitalização, que é efetuada em circuitos ADC (Analog to Digital Converter) situados a jusante, ficando os circuitos Sample and Hold livres para poderem receber uma nova amostragem.


A Transformada Discreta de Fourier é executada de imediato sobre os valores digitalizados, por meio do algoritmo FFT, em circuitos apropriados de Processamento Digital de Sinais. Estes circuitos realizam uma quantidade impressionante de multiplicações (que são trabalhosas e demoradas em ambiente digital, aliás), além de utilizarem memórias intermédias (que desta vez são digitais), também em quantidades colossais.

Os processadores gráficos, chamados GPU (Graphics Processing Units), sob todas as suas formas (desde as "pastilhas" de silício até às placas gráficas mais poderosas), são a "casa" por excelência do processamento digital de sinais. Estes sofisticadíssimos processadores adaptam ao nosso tempo a velhinha Transformada de Fourier, que foi formulada há duzentos anos por um matemático francês chamado Jean-Baptiste Joseph Fourier, nascido em 1768 e falecido em 1830.


10 setembro 2025

Ornithology


Ornithology, um tema de jazz da autoria de Charlie Parker e Benny Harris, com Charlie Parker no saxofone alto, Red Garland no piano, Billy Griggs no contrabaixo e Roy Haynes na bateria. Gravado em 1953


Tocar música improvisada, de que se é autor e intérprete, em público é sempre mais arriscado e daí mais atractivo para o ouvinte. Ouvê-se jazz. Esta obra de Parker, neste caso e versão, foi gravada (um descaramento reter música que é improvisada e nunca é igual!…) num histórico clube de jazz que existia em Boston, o Storyville. Charles Parker ou Yardbird ou Bird ou Charlie tem como parceiros três músicos que não são muito frequentes ou habituais na sua discografia. Este, com certeza, um grupo de ocasião.

À bateria Roy Haines, que gravou o bastante com Parker para então já ser considerado um excelente percussionista moderno, com swing a puxar para a frente, já lá estava tudo o que se viria a tocar à bateria, depois e até hoje. Em contrabaixo Billy Griggs cumpre, solando em discreto walking, sem se dar por ele. Red Garland ao piano sempre foi exemplar, um típico pianista do be-bop, um fraseado de perfil muito regular, um discurso com muitas palavras, perfeitamente inteligível, lógico e, daí, melódico. Parker em alto fazia o que ninguém na altura fazia (inovador) e hoje ainda todos o citam (mestre). Velocidade e certeza — dedos e cabeça, mais do que cabeça e depois dedos — com Parker as frases saíam como a água sai da nascente ou o petróleo dos poços, com riqueza, naturalidade, força. "Ornithology", que tem a ver com a alcunha de pássaro, sabe a blues e é uma composição típica bop, difícil. Experimentem decorá-la, só faz bem. Reparem na paráfrase de Parker na reexposição do tema, faz ainda melhor.



José Duarte (1938–2023)

03 setembro 2025

Perseu com a Cabeça de Medusa


Perseu com a Cabeça de Medusa, 1545–1554, escultura de bronze do artista florentino Benvenuto Cellini (1500–1571). Piazza della Signoria, Florença, Itália
Vista de frente
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Vista de lado
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Vista de trás
(Clicar na imagem para ampliá-la)


De acordo com a mitologia da Grécia Antiga, Medusa era uma das três górgonas, que eram seres com figura de mulher, tinham serpentes em vez de cabelos e possuíam a capacidade de transformar em pedra qualquer pessoa que as olhasse diretamente.

Segundo o poeta romano Ovídio, Medusa tinha sido uma mulher muito bela, que servira como sacerdotisa no templo de Atena, a deusa da sabedoria, da arte e da justiça. Um dia, Medusa teve relações amorosas com o deus do mar, Poseidon, dentro do próprio templo de Atena. Quando tomou conhecimento do que considerou ser uma profanação do seu templo, a deusa Atena, que se mantinha eternamente virgem, amaldiçoou Medusa, transformando-a numa górgona.

Perseu foi um dos heróis mais admirados de toda a mitologia grega. Semi-deus, por ser filho de Zeus e de uma mortal chamada Dânae, Perseu era jovem, forte e destemido. Desafiado a enfrentar e a matar a perigosa Medusa, Perseu aceitou o repto. Quatro deuses decidiram então apoiá-lo na sua temerária empresa. Hermes (deus mensageiro) deu-lhe um par de sandálias aladas para voar, Hades (deus dos mortos) deu-lhe um elmo que tinha a capacidade de o tornar invisível, Atena deu-lhe um escudo de bronze muito polido e Zeus (deus do raio e do trovão e pai de Perseu) deu-lhe uma espada para matar a górgona.

Perseu voou até onde Medusa se encontrava, mas ela não o podia ver, porque ele tinha na cabeça o elmo que o tornava invisível. Sem nunca olhar diretamente para Medusa, para não ser petrificado, Perseu aproximou-se dela de costas, enquanto via a sua imagem refletida no escudo, que funcionava como um espelho. Quando chegou junto de Medusa, Perseu cortou-lhe a cabeça com a espada e Medusa morreu.

Este episódio da mitologia grega inspirou muitos artistas pelos tempos fora, desde a Grécia Antiga até hoje. A mais famosa representação deste episódio deve-se a um genial escultor florentino chamado Benvenuto Cellini, que criou uma das mais extraordinárias esculturas de bronze que até hoje se fizeram. Também do ponto de vista técnico, Perseu com a Cabeça de Medusa constituiu um feito notável para o séc. XVI.

A escultura Perseu com a Cabeça de Medusa, de Cellini, pode ser admirada gratuitamente por todos, pois não está num museu. Juntamente com outras notáveis esculturas de outros grandes artistas, está ao ar livre, mas abrigada das intempéries na chamada Loggia dei Lanzi, que é uma edificação de planta quadrangular, aberta em três dos quatro lados através de amplos arcos assentes sobre colunas, e que fica na Piazza della Signoria, na cidade de Florença, Itália.

27 agosto 2025

Leonel Marques Pereira


O Rei D. Fernando no Passeio Público, 1856, óleo sobre tela de Leonel Marques Pereira (1828–1892), Palácio Nacional da Pena, Sintra
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Festa na Aldeia, óleo sobre tela de Leonel Marques Pereira (1828–1892), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

O pintor Leonel Marques Pereira nasceu em 1828 na cidade de Lisboa. Estudou na Academia de Belas-Artes de Lisboa e foi um importante artista plástico português na época do Romantismo. As suas pinturas são uma rigorosa descrição dos costumes burgueses e populares no seu tempo e têm, por isso, um importante valor documental, a acrescentar ao seu grande valor intrínseco enquanto obras de arte. Profissionalmente, Leonel Marques Pereira foi desenhador na Direcção Geral de Engenharia Militar. Faleceu em 1892, na cidade onde nasceu.

24 agosto 2025

O concerto para clarinete de Mozart


Concerto para clarinete e orquestra em lá maior, n.º 622 do catálogo Köchel, do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791), pelo clarinetista britânico Michael Collins, acompanhado pela orquestra de câmara London Mozart Players. Esta obra foi composta por Mozart poucas semanas antes de morrer, com 35 anos de idade, e tem três andamentos:
 Allegro;
 Adagio;
— Rondó: Allegro

22 agosto 2025

Uma inofensiva batalha musical


Batalha de 6.º Tom, do compositor português Pedro de Araújo (c. 1640 – 1705), pelo organista espanhol Arturo Barba Sevillano, tocando o órgão fabricado em 1706 do Monasterio de las Huelgas Reales, Valladolid, Espanha. Segundo Jorge Alves Barbosa, esta batalha organística é composta pelas seguintes partes:
— Exortação;
— Apresentação dos exércitos;
— Parte central, mais idílica;
— Batalha propriamente dita;
— Toque de vitória e exultação final

20 agosto 2025

A Árvore

Árvore, — amiga constante,
Desde o berço à sepultura!
Bendita a mão que te plante,
Bendita a voz que te cante,
Bendita sejas na altura!

Estende à luz os teus ramos,
Onde a harmonia se gera!
Perfuma o ar que aspiramos…
— Dá-nos flor na primavera!

Cobre de verde folhagem
Teus braços, docel sombrio!
Abranda a calma da aragem…
— Dá-nos a sombra do estio!

Os teus pomos ao Sol cora…
E pensa que ao abandono
Há muita boca que implora:
— Dá-me o teu fruto no Outono!

Em vindo a dura inverneira,
Seja o teu gesto mais terno!
Dá-nos calor na lareira…
— Dá-nos a lenha no inverno!

Bendita seja a constância
Que há na tua proteção!
Árvore, — amor e abundância! —
— Deste-me o berço na Infância!
Dá-me na Morte o caixão!

João Saraiva (1866–1948)

in Líricas e Sátiras, edição Renascença Portuguesa, Porto, 1916


Castanheiros (Foto de autor desconhecido)

18 agosto 2025

Noite infernal

Esta mágoa em noite de cacimbo
martela lentamente o pensamento
no instante em que ruge o avião
partindo o silêncio com estrondo…
as bombas vomitando o fogo
que a combustão do napalm espalha
nas aldeias de fantasmas famintos
que matam todas as esperanças
da gente pobre e franzinas crianças
que tentam fugir de qualquer jeito
— vergonha da pátria sem o proveito!

Meus olhos brilharam de espanto
ao verem a sanzala em chamas…
ali sufocadas no calor das labaredas
ficaram as crianças de choro abafado,
bombas a rasgar sulcos nas veredas
por onde se arrastavam os corpos
queimados num sofrimento danado.

Quando a consciência salta o orvalho
por um lapso de tempo vi o inferno
com as bombas riscando os céus…
o rebentamento de efeito medonho
rasgou as palhotas com gente dentro
e o aniquilamento daquela sanzala
deixou-me preso à sequência da morte
com a garganta presa e sem fala.

Um cheiro intenso ataca as narinas
perde-se a seiva nas balas de fogo
e dilui-se o medo do alastramento
de tantas queimadas feitas à toa…
o absurdo de quem manda no jogo
está muito longe, talvez em Lisboa!

Onzo, Norte de Angola, 1962

Joaquim Coelho, antigo combatente das tropas especiais de intervenção, in O Despertar dos Combatentes, Clássica Editora, Lisboa, 2005


Avião militar Lockheed PV-2 Harpoon (Foto de autor desconhecido)

16 agosto 2025

Misty


Misty, um tema de jazz da autoria de Errol Garner, por Bob Brookmeyer no trombone, Stan Getz no saxofone tenor, Herbie Hancock no piano, Gary Burton no vibrafone, Ron Carter no contrabaixo e Elvin Jones na bateria. Gravado em 1964

14 agosto 2025

Concerto para guitarra n.º 1 de Mauro Giuliani


Concerto para Guitarra Clássica e Orquestra de Cordas N.º 1 em Lá Maior, op. 30 do compositor italiano Mauro Giuliani (1781–1829), pelo guitarrista eslovaco Karol Samuelčík e o Quarteto Mucha, de Bratislava, Eslováquia

12 agosto 2025

Como é ser criança entre os índios Yudjá do Alto Xingu


Waapa, documentário com cerca de 21 minutos de duração, sobre a educação tradicional das crianças entre os índios Yudjá da aldeia Tuba Tuba, no Parque Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil

09 agosto 2025

Júlio


Família, óleo sobre tela de Júlio (1902–1983). Coleção particular

Pintura, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Fundação Mário Soares e Maria Barroso, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Noturno, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Câmara Municipal de Vila do Conde, Vila do Conde
(Clicar na imagem para ampliá-la)

O Burguês e a Menina, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, LIsboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Júlio Maria dos Reis Pereira foi irmão do escritor José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira. Ambos nasceram em Vila do Conde, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, sendo José cerca de um ano mais velho do que Júlio. José nasceu em 1901 e Júlio em 1902.

Enquanto José Régio foi sobretudo um escritor, que por vezes também pintava e desenhava, Júlio Reis Pereira tornou-se sobretudo artista plástico (assinando as suas obras como Júlio), que por vezes também escrevia poesia (com o pseudónimo de Saul Dias). Ambos os irmãos pertenceram a um movimento literário e artístico veiculado pela influente revista Presença, que se publicou em Coimbra entre 1927 e 1940 e na qual tiveram participação ativa.

Júlio licenciou-se em Engenharia Civil pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ao mesmo tempo que frequentava o Curso Preparatório da Escola Superior de Belas-Artes do Porto, mas não concluiu os seus estudos artísticos. Contudo, foi como artista que Júlio mais se distinguiu, nos domínios da pintura, desenho, etc. Pertenceu à segunda geração modernista portuguesa.

Júlio passou muitos anos da sua vida em Évora, onde foi um entusiástico colecionador e defensor da olaria tradicional do Alentejo, nomeadamente dos barros de Estremoz. Em 1972 voltou para Vila do Conde, onde faleceu em 1983.

07 agosto 2025

Polonaise n.º 6 de Chopin


Polonaise n.º 6 em lá bemol maior, op. 53, Heróica, do compositor polaco Frédéric Chopin (1810–1849), pelo pianista Artur Rubinstein (1887–1982), também polaco

05 agosto 2025

O autor aos seus versos

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765–1805)


(Foto de Marco)