18 agosto 2025

Noite infernal

Esta mágoa em noite de cacimbo
martela lentamente o pensamento
no instante em que ruge o avião
partindo o silêncio com estrondo…
as bombas vomitando o fogo
que a combustão do napalm espalha
nas aldeias de fantasmas famintos
que matam todas as esperanças
da gente pobre e franzinas crianças
que tentam fugir de qualquer jeito
— vergonha da pátria sem o proveito!

Meus olhos brilharam de espanto
ao verem a sanzala em chamas…
ali sufocadas no calor das labaredas
ficaram as crianças de choro abafado,
bombas a rasgar sulcos nas veredas
por onde se arrastavam os corpos
queimados num sofrimento danado.

Quando a consciência salta o orvalho
por um lapso de tempo vi o inferno
com as bombas riscando os céus…
o rebentamento de efeito medonho
rasgou as palhotas com gente dentro
e o aniquilamento daquela sanzala
deixou-me preso à sequência da morte
com a garganta presa e sem fala.

Um cheiro intenso ataca as narinas
perde-se a seiva nas balas de fogo
e dilui-se o medo do alastramento
de tantas queimadas feitas à toa…
o absurdo de quem manda no jogo
está muito longe, talvez em Lisboa!

Onzo, Norte de Angola, 1962

Joaquim Coelho, antigo combatente das tropas especiais de intervenção, in O Despertar dos Combatentes, Clássica Editora, Lisboa, 2005


Avião militar Lockheed PV-2 Harpoon (Foto de autor desconhecido)

16 agosto 2025

Misty


Misty, um tema de jazz da autoria de Errol Garner, por Bob Brookmeyer no trombone, Stan Getz no saxofone tenor, Herbie Hancock no piano, Gary Burton no vibrafone, Ron Carter no contrabaixo e Elvin Jones na bateria. Gravado em 1964

14 agosto 2025

Concerto para guitarra n.º 1 de Mauro Giuliani


Concerto para Guitarra Clássica e Orquestra de Cordas N.º 1 em Lá Maior, op. 30 do compositor italiano Mauro Giuliani (1781–1829), pelo guitarrista eslovaco Karol Samuelčík e o Quarteto Mucha, de Bratislava, Eslováquia

12 agosto 2025

Como é ser criança entre os índios Yudjá do Alto Xingu


Waapa, documentário com cerca de 21 minutos de duração, sobre a educação tradicional das crianças entre os índios Yudjá da aldeia Tuba Tuba, no Parque Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil

09 agosto 2025

Júlio


Família, óleo sobre tela de Júlio (1902–1983). Coleção particular

Pintura, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Fundação Mário Soares e Maria Barroso, Lisboa
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Noturno, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Câmara Municipal de Vila do Conde, Vila do Conde
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O Burguês e a Menina, óleo sobre cartão de Júlio (1902–1983). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, LIsboa
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Júlio Maria dos Reis Pereira foi irmão do escritor José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira. Ambos nasceram em Vila do Conde, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, sendo José cerca de um ano mais velho do que Júlio. José nasceu em 1901 e Júlio em 1902.

Enquanto José Régio foi sobretudo um escritor, que por vezes também pintava e desenhava, Júlio Reis Pereira tornou-se sobretudo artista plástico (assinando as suas obras como Júlio), que por vezes também escrevia poesia (com o pseudónimo de Saul Dias). Ambos os irmãos pertenceram a um movimento literário e artístico veiculado pela influente revista Presença, que se publicou em Coimbra entre 1927 e 1940 e na qual tiveram participação ativa.

Júlio licenciou-se em Engenharia Civil pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ao mesmo tempo que frequentava o Curso Preparatório da Escola Superior de Belas-Artes do Porto, mas não concluiu os seus estudos artísticos. Contudo, foi como artista que Júlio mais se distinguiu, nos domínios da pintura, desenho, etc. Pertenceu à segunda geração modernista portuguesa.

Júlio passou muitos anos da sua vida em Évora, onde foi um entusiástico colecionador e defensor da olaria tradicional do Alentejo, nomeadamente dos barros de Estremoz. Em 1972 voltou para Vila do Conde, onde faleceu em 1983.

07 agosto 2025

Polonaise n.º 6 de Chopin


Polonaise n.º 6 em lá bemol maior, op. 53, Heróica, do compositor polaco Frédéric Chopin (1810–1849), pelo pianista Artur Rubinstein (1887–1982), também polaco

05 agosto 2025

O autor aos seus versos

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765–1805)


(Foto de Marco)

01 agosto 2025

Vem, cacimbo


Vem, cacimbo
Estende teus dedos anelados sobre a minha carapinha
derrama a tua inconsciente tranquilidade
sobre a minha angústia submergida.

Vem, cacimbo
eu quero ver os cafeeiros ao peso dos bagos vermelhos
endireita os troncos vencidos dos bambus
coroa os cumes altos das serras do Bailundo
limpa a visão empoeirada dos comboios que descem para
[Benguela
nimba poeticamente os horizontes dos camionistas de
[Angola.

Vem, cacimbo
debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da
[madrugada,
destrói a angústia resignada das gentes da minha terra
abre-lhes os horizontes dos cantos de esperança.

Vem, cacimbo
Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza
a esta hora empoeirada com o barulho das esquinas
com o cheiro a óleo sujo dos automóveis
e com a visão daquele nosso amigo
cujo ordenado são quinze escudos diários
irremediavelmente caido sobre a grama do jardim

Ó cacimbo
eu quero percorrer teus campos sossegados
orquestrados pela alegria do beija-flor.

Henrique Guerra (1937–2023), poeta angolano


Cacimbo (do quimbundo kixibu) - Nome dado em Angola à estação do ano seca e fria; na planície litoral do país, sobretudo, esta estação do ano costuma ser caracterizada por nevoeiros, que também são chamados cacimbo, e por nuvens baixas que ocultam o sol por vezes durante semanas


Cacimbo em Angola (foto de autor desconhecido)

28 julho 2025

Músicas tão ligeiras como os dias de verão


Ora Vejam Lá, pelo Conjunto de António Mafra

Datemi un Martello, por Rita Pavone

O Calhambeque, por Roberto Carlos

Supercalifragilisticexpialidocious, por Julie Andrews e Dick Van Dyke, num excerto do filme Mary Poppins

23 julho 2025

Pois nossas madres vam a Sam Simom

Pois nossas madres vam a Sam Simom
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e elas entom
          queimem candeas por nós e por si,
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos todos lá irám
por nos veer e andaremos nós
bailand'ant'eles fremosas em cós;
e nossas madres, pois que alá vam,
          queimem candeas por nós e por si,
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos irám por cousir
como bailamos e podem veer
bailar [i] moças de bom parecer;
e nossas madres, pois lá querem ir,
          queimem candeas por nós e por si,
          e nós, meninhas, bailaremos i.

Pedro Viviães (séc. XIII), segrel português ou galego


GLOSSÁRIO

candeas - velas
punhemos - pugnemos, decidamos
i - aí
em cós - com vestuário leve
alá - lá
cousir - observar


EXPLICAÇÃO

Segundo esta cantiga de amigo, as moças tencionam ir com as suas mães à romaria de São Simão, em Vale de Prados (Macedo de Cavaleiros?), para dançarem, ligeiras, diante dos rapazes, enquanto as suas mães acendem piedosas velas ao santo.


Bailaremos, por Pedro Barroso, versão moderna da cantiga de amigo de Pedro Viviães Pois nossas madres vam a Sam Simom. Desta cantiga, só o poema chegou até aos nossos dias; a música é do próprio Pedro Barroso

19 julho 2025

Josefa de Óbidos


S. Francisco de Assis e Santa Clara Adorando o Menino Jesus, 1647, óleo sobre cobre de Josefa de Óbidos (1630–1684), coleção particular
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Santa Maria Madalena, 1650, óleo sobre cobre de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra
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Natividade, c. 1650–60, óleo sobre cobre de Josefa de Óbidos (1630–1684), coleção particular
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Cordeiro Pascal, c. 1660–70, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Nacional de Frei Manuel do Cenáculo, Évora
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Cesta com Cerejas, Queijos e Barros, c. 1670–80, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), coleção particular
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Adoração dos Pastores, 1669, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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S. José e o Menino, c. 1670, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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Transverberação de Santa Teresa, c. 1672, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Igreja Matriz de Cascais, Cascais
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O Menino Jesus Salvador do Mundo, 1673, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Igreja Matriz de Cascais, Cascais
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Visão de S. João da Cruz, 1673, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos Vinhos, Figueiró dos Vinhos
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Natureza Morta com Doces e Barros, 1676, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Municipal de Santarém, Santarém
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Anunciação, 1676, óleo sobre tela de Josefa de Óbidos (1630–1684), Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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Calvário, 1679, óleo sobre madeira de Josefa de Óbidos (1630–1684), Santa Casa da Misericórdia de Peniche, Peniche
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Josefa de Óbidos foi uma pintora barroca notável por várias razões. De entre elas se destaca o facto de ser mulher e, ainda por cima, emancipada, que viveu da sua arte sem depender de ninguém, no Portugal beato, inquisitorial e patriarcal do séc. XVII. Uma mulher assim é verdadeiramente motivo de grande respeito e admiração.

Josefa de Ayala Figueira, que ficou conhecida como Josefa de Óbidos, nasceu no ano de 1630 em Sevilha, Espanha, fruto do casamento do pintor maneirista português Baltazar Gomes Figueira com a espanhola Catarina de Ayala Camacho Cabrera Romero. Aos 4 anos de idade, Josefa mudou-se para Portugal com os seus progenitores, que acabaram por se fixar em Óbidos, terra natal do seu pai. Em 1644, Josefa foi para Coimbra, a fim de se tornar freira no Convento de Santa Ana, mas este não foi o destino que ela mesma quis seguir. Ao fim de dois anos saiu do convento, conseguiu obter a sua emancipação legal e passou a ter uma vida economicamente independente, graças ao seu enorme talento.

Josefa de Óbidos pintou mais de cem quadros, que são valorizadíssimos e se encontram espalhados por diversas coleções públicas, religiosas e privadas, e faleceu na vila de Óbidos em 1684.

13 julho 2025

Atalanta e Hipomenes


Atalanta e Hipomenes, 1612, óleo sobre tela do pintor bolonhês Guido Reni (1575–1642), Museu Nacional do Prado, Madrid, Espanha
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Atalanta é o nome de uma ninfa da mitologia grega. Quando Atalanta nasceu, o seu pai abandonou-a no meio de um monte, porque só queria filhos do sexo masculino. Atalanta foi criada por uma ursa, que a ensinou a caçar, e tornou-se tão exímia na caça e tão veloz na perseguição das suas presas, que nem os deuses mais rápidos conseguiam correr mais depressa do que ela.

Após uma consulta a um oráculo, que lhe disse que um casamento viria a constituir a sua desgraça, Atalanta decidiu não se casar. No entanto, como era possuidora de grande beleza, ela era cortejada por muitos rapazes que pretendiam desposá-la. Sabendo que ninguém lhe conseguiria vencer numa corrida, Atalanta determinou então que todos os pretendentes teriam de competir com ela, afirmando que só casaria com aquele que a vencesse. Quem não o conseguisse, seria implacavelmente morto. Um após outro, todos os pretendentes foram sendo mortos pela lança de Atalanta, porque não conseguiam correr mais depressa do que ela.

Um dia, apresentou-se um pretendente chamado Hipomenes, que, tal como os outros, aceitou o repto. Sabendo de antemão que não iria conseguir vencer Atalanta, Hipomenes pediu ajuda a Afrodite, a deusa do Amor, que lhe deu três maçãs de ouro. Hipomenes participou na corrida com as três maçãs nas mãos. A meio da corrida, sentindo-se aflito para conseguir acompanhar a passada de Atalanta, Hipomenes largou a primeira maçã de ouro. Atalanta deteve-se para apanhar a maçã do chão, mas logo a seguir acelerou o passo e acabou por conseguir recuperar o seu atraso relativamente a Hipomenes. Este soltou então a segunda maçã, que voltou a provocar mais uma momentânea paragem de Atalanta para apanhá-la, mas a seguir a ninfa voltou a conseguir recuperar o seu atraso. Hipomenes largou finalmente a terceira maçã de ouro, que Atalanta voltou a apanhar, mas, como já estavam muito próximos da meta, foi Hipomenes quem ganhou a corrida, porque Atalanta já não conseguiu alcançá-lo a tempo.

É esta a história que o presente quadro, cheio de movimento, pretende contar.

09 julho 2025

Let the Sunshine In


Cenas finais do filme Hair, estreado em 1979, do realizador checoslovaco Miloš Forman, com o tema musical Let the Sunshine In, composto por Galt MacDermot (música) e por James Rado e Gerome Ragni (letra), para o musical Hair, contra a guerra do Vietname, levado à cena na Broadway em 1968

07 julho 2025

A Bela-Menina


(Desenho de De Knutseljuf Ede)


Era um homem; vivia numa cidade e trazia navegações no mar, e depois foi ele e deu em decadência por se lhe perderem as navegações. Ele teve o seu pesar e não podia viver com aquela decência com que vivia no povoado e tinha umas terrinhas na aldeia e disse-lhes para a mulher e para as filhas: «Não temos remédio senão irmos para as nossas terrinhas; se vivemos com menos decência que até aqui somos pregoados dos nossos inimigos.»

A mulher e uma filha aceitaram, mas as outras duas filhas começaram a chorar muito. E depois foram. A que tinha ido de sua vontade era a mais nova e chamava-se Bela‑Menina; cantava muito e era a que cozinhava e ia buscar erva para o gado, de pés descalços; as outras metiam-se no quarto e não faziam senão chorar. Quando o pai ia para alguma parte, as mais velhas sempre lhe pediam que lhes trouxesse alguma cousa e a mais nova não lhe pedia nada. Vai nisto veio-lhe uma carta dum amigo dizendo que as navegações que vinham aí, que tiveram notícia e que fosse vê-las.

O homem caminhou mais um criado saber das tais navegações; quando saiu, disseram as suas filhas mais velhas que se as navegações fossem as dele lhes levasse algumas cousas que lhe declararam. E ele disse à mais nova. «Ora todas me pedem que lhes traga alguma cousa, só tu não me pedes nada?» «Vou pedir-lhe tambem uma cousa; onde o meu pai vir o mais belo jardim, traga me a mais bela flor que lá houver». O pai foi e chegou a uma cidade e reconheceu que as navegações não eram dele e foi‑se embora com a bolsa vazia. Chegou a um monte e anouteceu-lhe; ele viu uma luz e dirigiu-se para ela a ver se encontrava quem o acolhesse. Chegou lá e viu uma casa grande e estropeou à porta; não lhe falaram; tornou a estropear; não lhe falaram. E disse ao moço: «Vai aí por o portal de baixo ver se vês alguém». O moço foi e voltou: «Vejo lá muitas luzes dentro e cavalos a comer e penso para lhe botar; mas não vejo ninguém».

Então o homem mandou meter o cavalo na cavalhariça e entraram para a cozinha. Acharam lá que comer e como a fome não era pequena, foram comendo muito. E nisto aí vem por essa casa adiante uma cousa fazendo um grande arruído, assim como umas cadeias que vinham a rastos pela casa adiante e depois chegou ao pé deles um bicho de rastos e disse-lhes: «Boas noites». E eles puseram-se a pé com medo, e disseram-lhe: «Nós viemos aqui por não acharmos abrigo nem que comer noutra parte; mas não vimos fazer mal a ninguém». «Deixai-vos estar e comei». Demorou-se um pouco o bicho e disse-lhes: «Ora ide-vos deitar que eu tambem cá vou para o meu curral». E começou-se a arrastar pela cozinha e foi. Ao outro dia o homem foi ao jardim que era o mais belo que tinha visto e disse: «Já que não posso levar nada para as minhas filhas mais velhas, quero ao menos levar a flor para a Bela‑Menina…» Estava a cortar a flor e nisto o bicho salta-lhe: «Ah ladrão! Depois de t’eu acolher em minha casa, tu vens-me colher o meu sustento, que eu não me sustento senão em rosas». E ele disse: «Eu fiz mal, fiz; mas eu tenho lá uma filha que me pediu que lhe levasse a mais bela flor que eu visse na viagem, e não podendo levar nada às outras filhas, queria ao menos levar a flor; mas se a quereis ela aí fica». «Não, levai-a e se me trouxerdes cá essa filha, ficais ricos». O homem caminhou e chegou a casa muito apaixonado por não trazer nada às outras filhas e não achar as navegações e pegou na flor e deu-a à Bela‑Menina.

A filha assim que viu a flor disse: «Oh que bela flor! Onde a achou meu pai?» O pai contou-lhe o que vira e a filha disse: «Oh meu pai eu quero ir ver». «Olha que o bicho fala e disse também que te queria ver». «Pois vamos». E foram. A filha assim que viu o tal bicho disse: «Oh pai eu quero cá ficar com este bicho, que ele é muito bonito». O pai teve a sua pena, mas deixou-a. Passado algum tempo, ela disse: «Oh meu bichinho! Tu não me deixas ir ver os meus pais?» E ele disse-lhe: «Não; tu não vais lá por ora; teu pai vem cá». O pai veio e disse ao bicho: «Eu queria levar a rapariga». «Não me leves daqui a rapariga, senão eu morro e tu vai ali àquela porta e abre-a e leva dali a riqueza que tu quiseres e casa as tuas filhas». O homem que mais quis?

Um dia o bicho disse à Bela‑Menina: «A tua irmã mais velha lá vem de se receber; tu queres vê-la?» «Quero». «Vai ali e abre aquela porta». Ela foi e viu vir a irmã com o noivo e os pais. «Agora deixa-me ir ver o meu cunhado». «Eu deixava, deixava; mas tu não tornas». «Torno; dá-me só três dias que eu em dia e meio chego lá e torno cá noutro dia e meio». «Se não vieres nestes três dias, quando voltares achas-me morto». Ela foi; no fim dos três dias ela veio, mas tardou mais um pouquito que os três dias; ela foi ao jardim e viu-o deitado como morto. Chegou ao pé dele: «Ai meu bichinho!» E começou a chorar. Ele caiu e ela disse: «Coitadinho está morto; vou dar-lhe um beijinho.» E deu-lhe um beijo, mas o bicho fez-se num belo rapaz. Era um príncipe encantado que ali estava e que casou com ela.



Conto popular recolhido em Ourilhe, Celorico de Basto, por Adolfo Coelho (1847-1919)

02 julho 2025

Balada da Oliveira


Balada da Oliveira, de Pedro Caldeira Cabral, interpretada pelo próprio autor em guitarra portuguesa

30 junho 2025

Divindades aquáticas


Quinto episódio, com a duração de cerca de 25 minutos, da série documental Viagem ao Maravilhoso, realizada em 1990 por Carlos Brandão Lucas para a RTP

27 junho 2025

Alright, OK, You Win


Alright, OK, You Win, um tema musical de Sid Wyche com letra de Mayme Watts, pelo cantor de jazz norte americano Joe Williams

24 junho 2025

Moura Girão


A Galinha e os Pintos ou Uma Família, 1884, óleo sobre tela de Moura Girão (1840–1916). Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa
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Um Galo, 1885, óleo sobre madeira de Moura Girão (1840–1916). Museu de José Malhoa, Caldas da Rainha
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Paisagem Campestre, 1897, aguarela sobre papel de Moura Girão (1840–1916). Coleção particular
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O pintor naturalista português Moura Girão confessou um dia que gostava tanto de animais, que se sentia incapaz de comer uma asa de frango ou arroz de cabidela. Não duvidaremos desta afirmação nem por um momento, se virmos a quantidade de obras suas que representam, sobretudo, galos, galinhas e pintainhos. Moura Girão também pintou outros animais e outros temas, mas os galos e outros galináceos avultam na sua obra de forma claramente destacada.

José Maria de Sousa Moura Girão nasceu em Lisboa em 1840, fez parte do chamado Grupo do Leão, que Columbano Bordalo Pinheiro retratou num quadro famoso que está no Museu do Chiado, trabalhou durante uma boa parte da sua vida como restaurador no Museu Nacional de Arte Antiga e faleceu, também em Lisboa, em 1916.

19 junho 2025

Rapsódia Sueca N.º 1 de Alfvén


Rapsódia Sueca N.º 1, op. 19, do compositor sueco Hugo Alfvén (1872–1960), pela Orquestra Sinfónica Islandesa dirigida pelo maestro finlandês Petri Sakari

A Rapsódia Sueca N.º 1, de Hugo Alfvén, foi por este compositor chamada Midsommarvaka, palavra composta por Midsommar (="meio do verão") e vaka (="vigília"). Em português, esta palavra poderá ser traduzida de uma forma muito livre por "Noite de São João", pois ela se refere às festas do solstício de verão, que são de origem pagã e têm lugar um pouco por toda a Europa por alturas do dia de São João.

Várias considerações se poderiam fazer a propósito destas festas, assim na Suécia como em Portugal e na Europa em geral, a começar pela sua designação. A palavra sueca para o solstício de verão, que ocorre em 21 ou 22 de junho, é midsommar (em inglês midsummer), que quer dizer "meio do verão", mas o calendário diz-nos que no hemisfério norte o solstício de junho corresponde ao início do verão e não ao seu meio.

No norte da Europa há uma enorme diferença entre o verão e o inverno em termos de duração dos dias e das noites: enquanto no solstício de inverno a noite é longuíssima e o dia curtíssimo, no de verão sucede o contrário. Nas regiões situadas a norte do Círculo Polar Ártico, então, brilha o sol à meia-noite no solstício de verão, enquanto no de inverno o sol nem chega a nascer. Em resultado desta enorme variação na duração dos dias e das noites, considerava-se que o verão era a estação do ano que tinha as noites mais curtas e os dias mais compridos: começava em 1 de maio, atingia o seu apogeu no solstício e acabava no fim de julho.

Quando a vida dos povos europeus estava estreitamente ligada à Natureza, a sucessão das estações do ano e a sua influência na vida das pessoas tinham uma importância transcendente. Como eram pagãs, as pessoas acreditavam que era dos bons ou dos maus humores dos deuses e dos espíritos que dependiam as boas ou as más colheitas, a multiplicação ou não das cabeças de gado, as fúrias ou as calmarias dos mares que lhes davam o peixe, a saúde ou as doenças dos filhos que geravam, etc. Por isso, as pessoas procuravam afastar os espíritos maléficos e cair nas boas graças das divindades benéficas, recorrendo à magia, à superstição, às rezas, às oferendas, aos sacrifícios, à feitiçaria, etc. Os momentos mais propícios a tais práticas eram, sobretudo, os solstícios, tanto o do inverno, que acontece em dezembro, como o do verão, que ocorre em junho, porque são marcas reconhecíveis de uma viragem na sucessão das estações do ano e portanto na evolução da própria vida.

Reconhecendo a importância que tais crenças e tais práticas representavam para os povos, a Igreja procurou incorporá-las na sua própria liturgia. Em vez de as combater, a Igreja cristianizou as festividade pagãs dos solstícios, associando o solstício de inverno ao nascimento de Cristo, o Salvador, que é celebrado em 25 de dezembro, e o solstício de verão a São João Batista, o santo que anunciou a vinda próxima de Cristo e que é evocado no dia 24 de junho.

Enquanto a cristianização do solstício de inverno foi quase total, através das festividades tradicionais do Natal, na cristianização do solstício de verão muitas das antigas práticas e tradições pagãs resistiram até aos nossos dias, talvez porque a Igreja as tenha associado ao santo errado. São João Batista foi um santo austero, que vivia no deserto, se vestia de peles de animais, fazia jejuns e se alimentava de gafanhotos. Um santo assim dificilmente poderia ser associado a um tempo de sol, de calor e de esperança em colheitas abundantes. São João Batista foi tudo menos um santo alegre, rapioqueiro e até um pouco maroto, que é como a tradição o representa nas festividades do solstício de verão.

São João p’ra ver as moças
Fez uma fonte de prata;
As moças não vão a ela,
São João todo se mata.
(Quadra popular portuguesa)

A importância do solstício do verão é tão grande para os povos europeus, que quase todos eles o celebram. Ainda por cima, existem claras afinidades nas celebrações dos diversos povos do continente, que foram certamente fruto das muitas invasões e conquistas que a Europa sofreu ao longo dos séculos e dos milénios. Uma das afinidades mais evidentes na celebração do solstício de verão é a do uso do fogo. Aqui no Porto, por exemplo, é verdade que já ninguém salta a fogueira na noite de São João, como sucedia no passado, mas são lançados para o ar milhares de balões coloridos, impulsionados por uma mecha a arder. Paralelamente, na Finlândia, que fica no extremo oposto da Europa, acendem-se grandes fogueiras nas margens dos incontáveis lagos que existem no país. Isto anda tudo ligado, como se vê. Todos são europeus.

Na Suécia, as festividades do solstício de verão também tinham lugar na noite que antecede o dia de São João, tal como sucede em Portugal. Na década de 50 do século passado, porém, resolveram eliminar o feriado, passando as festividades para a noite de sexta-feira para sábado que estiver mais próxima do São João. Por isso, este ano, na Suécia, o Midsommarvaka calha na noite do dia 20 para 21 de junho.

15 junho 2025

Virgem com o Menino


Virgem com o Menino, imagem de marfim de finais do séc. XIII, de autor anónimo, esculpida num dente de elefante. Museu do Louvre, Paris, França
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